Lobisomens na Corte: Família era motivo de chacotas por sofrer de doença rara
Por sofrer de uma doença rara, a família Gonzales viveu entre nobres europeus no século 16 como a atração de um circo de bizarrices
Petrus Gonzales nasceu em 1537, nas ilhas Canárias. O menino era muito,
muito peludo - tinha cabelo até na palma das mãos. A notícia logo chegou ao
continente: as ilhas Canárias - que ficam no oceano Atlântico, a oeste do
Marrocos - receberam esse nome pelo grande número de cães que lá foram
encontrados na Antiguidade. Seria Petrus, então, uma espécie de menino-lobo?
Aos 10 anos, ele foi morar em Paris. Ninguém sabe ao certo quem deu o garoto
"de presente" ao rei Henri II, conhecido por sua atração por coisas e
pessoas exóticas. O fato é que sua majestade gostou do menino desde o início e
garantiu que ele fosse educado como um membro privilegiado da corte. Petrus
teve aulas de latim e boas maneiras, ganhou um emprego, casou-se e teve quatro
filhos e três filhas, quase todos peludos como ele.
A saga dessa família incomum na Europa renascentista é o tema de The Marvelous
Hairy Girls: The Gonzales Sisters and Their Worlds (As Maravilhosas Meninas
Peludas: As Irmãs Gonzales e Seus Mundos, sem tradução em português), da
historiadora Merry Wiesner-Hanks. "Eu estava fazendo uma pesquisa sobre
outro tema quando me deparei com a imagem de Antonietta (uma das filhas de
Petrus). Não consegui esquecer aquele rosto peludo e infantil. Decidi, então,
investigar a fundo a história da família Gonzales. A pintura que despertou
minha curiosidade virou a capa do livro", conta Merry, que é professora de
história na Universidade de Wisconsin-Milwaukee (EUA).
Em sua pesquisa, a historiadora encontrou citações sobre Petrus, sua mulher e
seus filhos em cartas, certidões de batismo, obituários, livros e relatórios
médicos e diplomáticos dos séculos 16 e 17.
Circo
Para Henri II, quanto mais bizarro, melhor. Em turnês que passavam por centenas
de cidades e duravam anos, a corte francesa produzia espetáculos com figuras
extraordinárias e seus feitos incríveis. Numa dessas viagens, em 1550, uma
"vila brasileira" foi reproduzida com papagaios, árvores, macacos,
ocas, redes e 50 índios de verdade. Nus, dançaram, cantaram e lançaram flechas
de fogo, incendiando as ocas. [CONTINUE LENDO...]
Apesar da presença de atrações inusitadas como essa, a chegada de Petrus causou
alvoroço na corte francesa. A princípio, ninguém sabia o que fazer com o menino.
Pensaram em mandá-lo para um zoológico. Outra opção seria treiná-lo para
entreter o rei, como fizeram com um grupo de anões - nesse caso, a piada era
vesti-los de monarca. Para a sorte do garoto, Henri II tinha outros planos.
Mais que um humano com cara de cachorro, ele queria um humano com cara de
cachorro que se comportasse como um nobre. Petrus foi nomeado assistente do
carregador de pão do rei, cargo que exigia um treinamento protocolar. Uma
caverna foi construída para o garoto num dos parques da realeza. "Diziam
que a ideia era amenizar a saudade que Petrus sentia de casa, mas claro que
estavam apenas criando sensacionalismo para impressionar os visitantes",
afirma Merry.
O primeiro registro sobre sua chegada à Europa é uma carta do representante na
corte francesa do duque de Ferrara, Giulio Alvarotto, a seu mestre: "O rei
está com um menino, de cerca de 10 anos, nascido nas Índias, que tem o rosto
completamente coberto de cabelos desde que nasceu, exatamente como as pinturas
de homens selvagens das florestas. Os pelos têm cerca de cinco dedos de
comprimento. São muito finos, o que torna possível ver todos os traços de seu
rosto. O pelo é louro-claro e muito delicado e fino, como o de um antílope, e
tem um cheiro bom. Ele fala espanhol e se veste como uma pessoa normal. Mas o
pelo o deixou frustrado para o resto da vida. Aqueles que cuidavam dele o deram
para nossa majestade".
Mais tarde, Gonzales virou secretário confidencial do rei, casou-se com uma
mulher chamada Catherine e teve sete filhos. Um deles, Ercole, morreu muito
cedo e nada se sabe sobre sua aparência. Entre os demais, apenas outro menino,
Paulo, não era peludo. As três filhas, portanto, herdaram a condição do pai.
Entre 1580 e 1590, toda a família viajou em direção ao sul da Europa. Na Suíça,
foram examinados pelo médico Felix Platter, que publicou um livro com
observações sobre os Gonzales: "Em Paris, havia um homem excepcionalmente
peludo em todo seu corpo, muito querido do rei Henri II e que fazia parte de
sua corte. As sobrancelhas e o cabelo na testa eram tão longos que ele tinha
que puxá-los para poder enxergar".
Em Parma, na Itália, os Gonzales caíram nas graças da família mais influente da
cidade, os Farneses, que tinha papas, cardeais e generais entre seus membros. O
duque Ranuccio Farnese deu um dos meninos de presente a seu irmão, o cardeal
Odoardo. Enrico, já com 18 anos, posou por ordem do cardeal para o pintor
Agostino Carracci. O quadro Enrico, o Cabeludo entrou para a coleção de
"animais" do cardeal. Além dele, estavam na coleção Pietro, o Bobo,
Amon, o Anão, dois cachorros, dois macacos e um papagaio. Antonietta foi dada
de presente à marquesa de Soragna, Isabella Pallavicina. Tratada como animal de
estimação, a menina era sempre levada a festas por sua "dona".
Os Gonzales eram constantemente examinados por médicos e tiveram seus retratos
pintados diversas vezes. Apesar dos bons modos e dos belos vestidos de brocado
que usavam, Maddalena, Francesca e Antonietta eram descritas como cabeludas,
selvagens, monstros, bestas ou aberrações. Francesca morreu criança. Maddalena
foi a única que se casou.
No século 16, eram comuns os casamentos arranjados. Paulo, Orazio e Enrico
(quatro vezes) também se casaram. As esposas eram sempre meninas de famílias
pobres. No caso de Maddalena, a história foi diferente. Ela vivia em Parma, sob
a guarda do duque Farnese, e também não tinha bens. Para torná-la mais
atraente, o duque deu a ela um belo dote: uma casa na cidade (era costume a
família da noiva oferecer bens ou dinheiro ao noivo). Escolhido pelo próprio
duque, o marido se chamava Giovan Maria Avinato e cuidava dos cães de caça dos
Farneses. A autora levanta a questão: "Será que Ranuccio e Odoardo Farnese
escolheram um homem com essa ocupação para ser marido de Maddalena, a Cabeluda,
porque eles acharam adequado ou porque acharam divertido?"
Enrico, Paulo, Orazio e Maddalena tiveram filhos. Há registros de que pelo
menos dois netos de Petrus e Catherine Gonzales nasceram peludos também.
Nenhuma pintura foi feita. "Aos poucos, a herança genética
desapareceu", diz Merry.
Mutação genética rara
A doença dos Gonzales é conhecida como hipertricose congênita, ou síndrome
de Ambras. É causada por mutação genética e não tem cura. Petrus foi o primeiro
caso registrado. Hoje há cerca de 100. O mais recente é o da tailandesa Supatra
Sasuphan, 11 anos, que entrou para o Guinness como a menina mais cabeluda do
mundo. Sem antecedentes na família, Supatra tentou resolver o problema com
depilação a laser. Mas os
pelos cresceram de novo.
Saiba mais
Livro
• The Marvelous Hairy Girls: The Gonzales Sisters and Their Worlds, Merry Wiesner-Hanks, Yale University Press, 2009, R$ 68,70
Livro
• The Marvelous Hairy Girls: The Gonzales Sisters and Their Worlds, Merry Wiesner-Hanks, Yale University Press, 2009, R$ 68,70
Fonte: MAXIMILIANOS, Adriana. Lobisomens na Corte: Família era motivo de chacotas por sofrer de doença
rara. In: Guia do estudante Abril. Disponível em: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/lobisomens-corte-familia-era-motivo-chacotas-sofrer-doenca-rara-694409.shtml. Acesso em: 14 set 2012.
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on 22 de fev. de 2013
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